O Exército Brasileiro é um ator político extremamente relevante na história brasileira. Militares dessa força armada instituíram a República (1889), foram protagonistas na Revolução de 1930 que pôs fim à República Velha, depuseram Getúlio Vargas (1945) e estabeleceram a longeva ditadura iniciada em 1º abril de 1964 com o golpe contra o presidente João Goulart (1919-1976).
A quase onipresença dos militares sempre foi objeto de estudos de historiadores e cientistas sociais brasileiros e estrangeiros. Com o governo de Jair Bolsonaro, acadêmicos, intelectuais e jornalistas voltaram a refletir sobre o papel dos militares no país. Com a tentativa de golpe apurada pela Polícia Federal e em análise na Procuradoria-Geral da República, especialistas indagam sobre a formação dos militares – como, por exemplo, construíram as noções e valores sobre democracia e Estado de Direito.
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A educação dos militares brasileiros é objeto de estudo da pós-doutoranda em ciências políticas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ana Amélia Penido Oliveira. A pesquisadora está lançando o livro Como se Faz um Militar? A Formação Inicial na Academia Militar das Agulhas Negras de 1995 a 2012, pela Editora Unesp.
Em entrevista à Agência Brasil, a pesquisadora aponta que no Brasil existem quatro sistemas de ensino – um do Exército, um da Marinha, um da Aeronáutica e um civil – e que somente este último é subordinado ao Ministério da Educação (MEC). “A educação militar tem que ser subordinada ao mesmo sistema de ensino que os civis”, defende.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida pela autora à Agência Brasil:
Agência Brasil: Professora, quando vieram a público os indícios do envolvimento de militares de alta patente do Exército na tentativa de golpe após as eleições de 2022, alguns analistas apontaram que há problemas na formação acadêmica e profissional dos quadros das Forças Armadas. Segundo eles, isso se demonstraria em visões de mundo bastante particulares. Em algum momento, a senhora percebe reflexos dessa maneira peculiar de enxergar a realidade na tentativa de golpe?
Ana Amélia Penido: Eu acho que tanto a tentativa de golpe quanto a resistência ao golpe têm relações com a formação, sobre como as escolas militares funcionam. A formação militar é distinta da civil em muitas dimensões. Talvez a principal delas seja a dimensão do internato, eles têm todo tempo controlado pela escola. Dormem na escola e acordam na escola. Não têm margem de autonomia para escolher o que vão fazer, a que horas vão fazer. Toda a rotina é controlada. Quando entram na escola militar, passam a ter outro nome, o nome de guerra. Eles recebem fardamento e têm o cabelo cortado. A essência das escolas militares não é aula de balística ou de outra matéria. Como explica o professor [e antropólogo] Celso Castro, a essência do ensino militar é aprender como ser um militar.
Resulta disso a questão: o que é esse militar em uma democracia, se a construção da identidade como tal é baseada na diferenciação do civil? Aprendem ‘ser militar é assim, ser civil é assado.’ Depois desse processo de diferenciação, cria-se o sentimento de superioridade: ‘ser militar é assim, e é melhor do que ser civil, que é assado.’ Isso às vezes vai surgir em comentários supersutis. Vou dar um exemplo que é corrente, eles dizem que, ‘nas universidades públicas, os banheiros estão todos pichados’ e que ‘ninguém cuida do espaço, tem rabiscado na parede. Aqui [na escola de formação militar] não, está tudo limpinho, branquinho, pois as pessoas cuidam do ambiente em que elas estão.’ Esse não é um comentário apenas sobre as diferenças. É um comentário valorativo. Implícita está a ideia de que o civil é inferior ao militar na capacidade de cuidar do espaço em que está.
Agência Brasil: Mas como isso deriva no golpismo?
Ana Amélia Penido: O que pode abrir espaço para o golpismo é a ideia de superioridade, que se desdobra na ideia de que ‘tenho os meus valores, a minha forma de organização, a minha maneira de ver o mundo, e essa minha maneira deve ser imposta ao restante. Porque ela é melhor.’ As escolas militares são espaço de autorreprodução simbólica. Por isso, toda vez que ouço algum comentário no sentido de ‘ah, mas as novas gerações são diferentes das antigas’, eu falo: ‘muita calma nessa hora.’ A essência, essa forma de organização, esses valores, essa distância entre o mundo civil e o mundo militar, se mantém.
Agência Brasil: A senhora pesquisou a formação dos oficiais do Exército Brasileiro na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Na Marinha e na Aeronáutica, o golpismo seria diferente?
Ana Amélia Penido: Eles são diferentes na própria formação. Isso não é só no Brasil. Em outros países, também. Normalmente, a Marinha e a Aeronáutica são mais próximas dos civis, principalmente por causa da dimensão tecnológica. Essas duas forças precisam de muita tecnologia em seus navios, submarinos e aviões. Esses recursos exigem capacitação civil muito grande, principalmente nas áreas de engenharia. Isso acaba por forçar maior interlocução civil-militar. Se a gente fosse pensar nessa lógica, uma receita para evitar o golpismo seria ter mais esse tipo de interlocução, onde civis e militares se encontram para conversar, construir coisas em comum e ter desafios reais em conjunto, como o desenvolvimento de tecnologia nacional, onde um grupo não pode desenvolver sem o outro.
Agência Brasil: Em um artigo acadêmico, a senhora e as demais autoras chamam a atenção para o fato de que as disciplinas de ciências exatas são minoritárias no currículo da Aman. Perdem para as disciplinas de ciências humanas e perdem de goleada para as chamadas ciências militares.
Ana Amélia Penido: Sim. Por isso eu fiz essa digressão sobre a Marinha e a Aeronáutica. O caso da Aeronáutica é ainda mais distinto, porque eles se formam como aviadores e também vão se formar como administradores. É outro perfil mesmo. Com relação ao Exército, a Aman quantifica tudo. Para se formar lá, o número de horas-aula é maior do que o necessário para se formar em medicina na USP ou na Unicamp. O tempo das disciplinas de ciências humanas aumentou por causa da aprendizagem de idiomas. Geralmente, quem fala em mudança de currículo da formação dos quadros do Exército está falando naquelas horas-aula específicas em que o aluno está sentado na cadeira em sala de aula ou em uma palestra. Essas pessoas costumam pensar que, se incluir direitos humanos ou uma disciplina sobre relações civis-militares, esse problema do golpismo vai estar resolvido. Não é bem assim. Eles estudam direito humanitário internacional, por exemplo.
Para entender como um militar se torna um militar, como aprende sobre hierarquia, e sobre ter disciplina, é preciso levar em consideração outras atividades de que os cadetes participam enquanto estão na Aman. Vou dar um exemplo. Todo mundo já deve ter assistido ou tem em mente aqueles momentos em que hasteiam bandeira ou marcham pra lá e pra cá. A repetição desses atos e exercícios não é porque não saibam marchar. Faz parte desse processo de aprender hierarquia e disciplina. Estão aprendendo o que é ser o militar. Como disse, se não me engano, o professor Celso Castro, ‘é quase uma segunda pele’. Eles não deixam de ser militares nem quando são reformados – na linguagem civil, quando se aposentam. É uma segunda pele que adquiriram depois de anos de convivência nos quartéis.
Agência Brasil: A senhora afirmou que tanto a tentativa de golpe quanto a resistência ao golpe têm relações com a formação. Em que medida o corporativismo incorporado influenciou nas duas atitudes?
Ana Amélia Penido: Nas escolas militares, os alunos são submetidos a situações extremamente difíceis, tensas e fisicamente desgastantes, como ficar muitas horas sem dormir, fazendo guarda, ou fazer longas caminhadas e marchas de dias, até sob chuva. Nessas situações, constroem laços de camaradagem fortes. Quando o Bolsonaro convocou quadros para o governo, trouxe gente da turma com quem conviveu na Aman [no período de 1974 a 1977]. É uma turma mesmo. As turmas formadas na Aman têm encontros anuais. São laços e vínculos muito fortes. Independentemente de onde forem servir durante a carreira militar, vão carregar isso para o resto da sua vida. Os kids pretos não são apenas egressos de um curso de operações especiais. Os kids pretos são um código de comunicação que gera identidade automática. Passaram por experiências muito difíceis, isso os torna diferenciados. É um grau de familiaridade, de identidade que vai para além do curso.
O que aprendem em aula ou em palestra tem dimensão secundária na formação dos militares. A dimensão principal é essa da identidade, que é formada dentro das academias. Depois desse sentimento de diferenciação, há o sentimento de superioridade, e aí, por fim, alguns grupos podem ser levados a pensar essa lógica: ‘já que eu sou melhor, então deixa eu te ensinar como é que faz.’
Agência Brasil: A sociedade deveria se preocupar com o que se aprende nas escolas militares? Os currículos deveriam ter o crivo do Ministério da Educação?
Ana Amélia Penido: Eu entendo que não só os currículos. A educação militar tem que ser subordinada ao mesmo sistema de ensino que os civis. No Brasil, a gente tem quatro sistemas de ensino. Um do Exército, um da Marinha, um da Aeronáutica e um civil. Somente este último é subordinado ao MEC. Essa autonomia foi garantida na Constituição Federal e referendada na Lei de Diretriz e Bases da Educação Nacional. Se não me engano, o [historiador] José Murilo Carvalho usava expressão ‘uma nação dentro da nação’ para enfatizar que os militares se organizam autonomamente.
Agência Brasil: A formação dos militares superlativiza o papel do Exército na história do Brasil? Por exemplo, aprendem que o Exército teria se originado ainda no tempo de colonização portuguesa, no século 17, quando os holandeses foram expulsos do Brasil?
Ana Amélia Penido: Isso está nos documentos do Exército. O nascimento da força com a Batalha de Guararapes. [A primeira batalha teria ocorrido em 19 de abril de 1648. Dia 19 de abril é Dia do Exército.] Há o mito, inclusive, de que o negro, o indígena e o branco português se uniram para poder expulsar o invasor holandês. Nesse caso, está amplamente comprovado que essa memória foi inventada posteriormente quando se precisava, na verdade, dar um significado para o Exército. Essa memória tem uma função fundamental, que é mostrar que o Exército nasceu antes do Brasil. Além de superiores, os militares seriam anteriores, seriam fundadores na nação. Seriam a única instituição nacional que é permanente.
Eles conseguem inventar tradições de uma maneira incrível. Guararapes é um exemplo, mas vamos pegar a Aman. Qualquer força armada do mundo quer se mostrar moderna, mas a Aman foi construída no formato de um castelo. Os castelos foram um meio de defesa do período medieval. Funcionou enquanto não tinha pólvora. A edificação, no entanto, remete à ideia de tradição. O novo e o velho no Exército Brasileiro se combinam. Os militares podem participar de uma superdiscussão sobre o uso de drones e, ao mesmo tempo, ter gente referendando a tortura, enquanto tática de extração de informações. Temos uma força querendo atuar globalmente através das missões de paz, mas que, ao mesmo tempo, constrói um castelo.
Agência Brasil: Em um artigo acadêmico, a senhora e as suas colegas discutem se o nosso oficialato é exatamente uma representação da população brasileira, como descreve a Estratégia Nacional de Defesa. Qual é o perfil dos nossos oficiais do Exército?
Ana Amélia Penido: Quando o Exército fala que [é] a imagem da nação, é a imagem inclusive classista. Quem se torna oficial são as camadas médias e altas da população, não as altíssimas. Quem faz serviço militar obrigatório nesse país é pobre. O oficial normalmente é uma carreira pública, com bons vencimentos. Os praças [soldados, cabos, sargentos, subtenentes] têm origem em famílias que enxergam no recrutamento militar obrigatório uma forma de garantir aos seus filhos a alimentação básica.
Agência Brasil: Um estudo do Ipea aponta um forte alinhamento entre Brasil e os Estados Unidos em cooperações militares. Que influência têm as Forças Armadas norte-americanas sobre nossa defesa?
Ana Amélia Penido: Eu tenho um artigo em que dialogo com esse estudo. Essa influência é profunda, vem desde a Segunda Guerra Mundial. Ela ocorre por meio de cursos, por meio de parcerias e cooperações. É um nível de dependência enorme. Não apenas em termos materiais, no fornecimento de equipamentos. É um nível de dependência doutrinário. Pensamos a guerra da mesma forma. Eventualmente, aparece uma ou outra dissidência.
A gente viu isso, por exemplo, quando os Estados Unidos estavam levando a cabo a guerra contra o terror [após o 11 de setembro, no governo George W. Bush] e aqui no Brasil alguns segmentos estavam reticentes. Aí os próprios Estados Unidos deram uma repaginada, e para a América Latina predominou a guerra contra as drogas. Passamos a partir daí a empregar os militares cada vez mais domesticamente. Recentemente, [em] uma pesquisa na Aeronáutica sobre com quais países o Brasil deveria se articular, a resposta unânime eram os Estados Unidos e em segundo lugar Israel. A China sequer foi mencionada, embora tenhamos um acordo de cooperação aeroespacial com os chineses há mais de 30 anos.
Fonte: Agência Brasil