Com 360 mil brasileiros no país europeu, queixas de xenofobia cresceram 142% no últimos anos. A herança colonial alimenta intolerância, somada ao preconceito linguístico, racismo e misoginia. Pessoas caminham pela Praça do Comércio em Lisboa, Portugal, terça-feira, 12 de abril de 2022
AP Photo/Armando Franca
“Só descobri o que é ser uma pessoa racializada aqui”, afirma a brasileira Priscila Valadão, que mora há 10 anos em Portugal. “Já fui chamada de macaca, puta, falam que a minha certidão (de naturalização) é de plástico.”
Ela relata ainda que, enquanto caminhava na rua, um homem português, ao notar que ela falava com sotaque brasileiro, gritou: “volta para sua terra” e a agrediu com uma bengala.
“Vivi, trabalhei e criei meus filhos aqui, mas não me sinto em casa, percebi que nunca vou ter direito a ser como os portugueses”.
Um balanço da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial aponta que em 2021, foram registradas 109 queixas de xenofobia contra brasileiros em Portugal, uma alta de 142% na comparação com 2018, quando houve 45 denúncias.
Os casos vão desde situações veladas como dificuldade em alugar um apartamento, conseguir trabalho ou acessar serviços de saúde, por exemplo, a pedidos para falar em inglês ao invés do português brasileiro, até ofensas explícitas e agressões.
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Alta na imigração alimenta tensões
O fluxo migratório em Portugal disparou a partir de 2015, quando o total de estrangeiros passou de 383,7 mil para mais de 1 milhão em 2023. Assim, os imigrantes passaram a compor cerca de 10% da população do país. Desses, 360 mil são brasileiros, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores, e representam a principal comunidade estrangeira no país.
Apesar da alta, a presença de brasileiros é vista como indesejada por uma fatia considerável da população portuguesa. Segundo uma pesquisa da Fundação Francisco Manual dos Santos, 38% dos portugueses consideram que os brasileiros trazem desvantagens ao país e 51% afirmaram que a entrada de desses imigrantes tem que diminuir.
Além disso, o número de brasileiros barrados ao tentar embarcar para Portugal subiu 700% entre 2023 e 2024 — passando de 179 para 1.470 pessoas, conforme aponta o Relatório Anual de Segurança Interna.
“De uma forma em geral, a sociedade portuguesa está mais intolerante face aos imigrantes em geral e aos imigrantes brasileiros em particular”, pondera a pesquisadora do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa), Mariana Machado.
“Eu penso que possa ser uma percepção de ameaça que existe por parte dos portugueses a ver os brasileiros como concorrentes diretos por empregos qualificados e por benefícios sociais”.
Relação metrópole e colônia
A herança colonial está na raiz da discriminação de que os brasileiros são alvo atualmente em Portugal, argumenta Mariana Machado.
“Existe no Brasil e em Portugal um mito ‘lusotropicalista’ que vê a miscigenação entre portugueses, indígenas e pessoas negras como uma prova de uma identidade naturalmente integradora dos portugueses. Mas é justamente isso que invisibiliza as violações sistemáticas de escravizados e depois das mulheres brasileiras livres”.
Uma das faces dessa discriminação é o gênero, de modo que as mulheres são associadas erroneamente à prostituição e a uma hipersexualização.
Entre a população negra, as discriminações se acumulam. “Os fenômenos são diferentes, porque uma pessoa branca pode sofrer xenofobia, enquanto uma pessoa negra também é alvo de racismo. Há uma perpetuação da hierarquia racial”, afirma a presidente da Casa do Brasil em Lisboa, Ana Paula Costa.
Ao negociar um período de férias no bar em que trabalhava em Lisboa, a pedagoga Larissa dos Santos foi assediada pela supervisora.
“Ela me disse que eu deveria me portar igual uma escravinha. Depois, disse que eu era muito petulante, que se pudesse me amarraria em um tronco e me daria chibatadas para aprender a me portar. Percebo que situações como essa, flagrantemente preconceituosas, não são consideradas como racismo. Depois disso, ela fez da minha vida um inferno, e pedi demissão.”
Além da origem e da cor da pele, o uso do idioma é mais uma fonte de discriminação. Para tentar passar despercebida, a socióloga Jéssica Ribeiro acabou adotando uma forma híbrida de falar o idioma.
“A pronúncia sai automática, não forço para fazer. Acho que é uma defesa inconsciente para evitar ser corrigida no uso das palavras. Já me disseram que falava errado, e mesmo com palavras conhecidas, não querem compreender. Isso aconteceu tantas vezes que me deixou insegura. É como se a nossa língua fosse inferior”, relata.
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Avanço da extrema direita
Assim como em outros países europeus, em Portugal, o discurso anti-imigração recrudesceu com o avanço eleitoral de partidos de extrema direita, como o Chega!.
Nas eleições legislativas de março do ano passado, a legenda elegeu 48 parlamentares, e se tornou a terceira maior força política do Parlamento, quadruplicando o número de representantes eleitos em relação a 2022.
“Importaram uma retórica política que não existia aqui”, diz Mariana Machado. “Usam os migrantes como bodes expiatórios e sobrevalorizam os estereótipos ligados à criminalidade, à hipersexualização.” O Chega! tem como principal bandeira propostas que pretendem restringir a imigração.
Em 2020, o dirigente do partido, André Ventura, teve uma fala xenofóbica repudiada por todas as outras siglas da Assembleia da República.
Em uma publicação no Facebook, ele sugeriu que a deputada Joacine Katar Moreira, do Livre, fosse deportada para Guiné-Bissau depois que ela defendeu a devolução do patrimônio cultural dos museus portugueses aos países de origem.
Denúncias de xenofobia
No entanto, sanções por racismo e xenofobia são raras no país. A lei n.º 93/2017, que trata do combate a esses casos prevê o pagamento de uma indenização quando há condenações. No Brasil, a legislação é mais dura.
O crime de racismo, assim como o de injúria racial, é inafiançável, e além da multa, também prevê prisão de 2 a 5 anos.
As denúncias por xenofobia e racismo em Portugal podem ser registradas no e-mail da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial ([email protected]). Havia um formulário virtual para coletar as queixas, que está fora do ar.
Carolina Vieira, fundadora da Plataforma Geni — que orienta as vítimas de xenofobia sobre onde encontrar apoio —, incentiva os brasileiros a registrarem as denúncias.
“Assim geramos dados estatísticos e podemos pressionar as autoridades por sanções”.
Carolina reconhece que a impunidade dificulta as denúncias. “Eu mesma já fiz três queixas e até hoje não fui chamada para depor em nenhuma delas.”
O levantamento da Casa do Brasil de Lisboa aponta que 76% dos brasileiros alvos de discurso de ódio em Portugal não prestaram queixa.
“Os principais motivos destacados pelas pessoas migrantes inquiridas para não denunciar foram medo, sensação de impotência, sentimento de impunidade, custo financeiro e falta de acolhimento”, descreve o documento.
Reação à impunidade
Movimentos sociais de combate ao racismo e a xenofobia em Portugal consideram que a legislação para punir os agressores é frouxa. Por isso, diversos grupos articularam um abaixo-assinado para uma Iniciativa Legislativa Cidadã.
O objetivo da proposta é alterar o Código Penal para que, em vez de serem considerados apenas ilícitos administrativos, a discriminação racial e de origem passe a ser crime no país.
“É imprescindível uma reformulação jurídica que enquadre estas condutas como crimes, com as devidas consequências penais, para assim garantir a proteção efetiva dos direitos fundamentais e reforçar o compromisso do Estado com a justiça e a igualdade”, diz o documento.
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AP Photo/Armando Franca
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Ela relata ainda que, enquanto caminhava na rua, um homem português, ao notar que ela falava com sotaque brasileiro, gritou: “volta para sua terra” e a agrediu com uma bengala.
“Vivi, trabalhei e criei meus filhos aqui, mas não me sinto em casa, percebi que nunca vou ter direito a ser como os portugueses”.
Um balanço da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial aponta que em 2021, foram registradas 109 queixas de xenofobia contra brasileiros em Portugal, uma alta de 142% na comparação com 2018, quando houve 45 denúncias.
Os casos vão desde situações veladas como dificuldade em alugar um apartamento, conseguir trabalho ou acessar serviços de saúde, por exemplo, a pedidos para falar em inglês ao invés do português brasileiro, até ofensas explícitas e agressões.
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O fluxo migratório em Portugal disparou a partir de 2015, quando o total de estrangeiros passou de 383,7 mil para mais de 1 milhão em 2023. Assim, os imigrantes passaram a compor cerca de 10% da população do país. Desses, 360 mil são brasileiros, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores, e representam a principal comunidade estrangeira no país.
Apesar da alta, a presença de brasileiros é vista como indesejada por uma fatia considerável da população portuguesa. Segundo uma pesquisa da Fundação Francisco Manual dos Santos, 38% dos portugueses consideram que os brasileiros trazem desvantagens ao país e 51% afirmaram que a entrada de desses imigrantes tem que diminuir.
Além disso, o número de brasileiros barrados ao tentar embarcar para Portugal subiu 700% entre 2023 e 2024 — passando de 179 para 1.470 pessoas, conforme aponta o Relatório Anual de Segurança Interna.
“De uma forma em geral, a sociedade portuguesa está mais intolerante face aos imigrantes em geral e aos imigrantes brasileiros em particular”, pondera a pesquisadora do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (Ispa), Mariana Machado.
“Eu penso que possa ser uma percepção de ameaça que existe por parte dos portugueses a ver os brasileiros como concorrentes diretos por empregos qualificados e por benefícios sociais”.
Relação metrópole e colônia
A herança colonial está na raiz da discriminação de que os brasileiros são alvo atualmente em Portugal, argumenta Mariana Machado.
“Existe no Brasil e em Portugal um mito ‘lusotropicalista’ que vê a miscigenação entre portugueses, indígenas e pessoas negras como uma prova de uma identidade naturalmente integradora dos portugueses. Mas é justamente isso que invisibiliza as violações sistemáticas de escravizados e depois das mulheres brasileiras livres”.
Uma das faces dessa discriminação é o gênero, de modo que as mulheres são associadas erroneamente à prostituição e a uma hipersexualização.
Entre a população negra, as discriminações se acumulam. “Os fenômenos são diferentes, porque uma pessoa branca pode sofrer xenofobia, enquanto uma pessoa negra também é alvo de racismo. Há uma perpetuação da hierarquia racial”, afirma a presidente da Casa do Brasil em Lisboa, Ana Paula Costa.
Ao negociar um período de férias no bar em que trabalhava em Lisboa, a pedagoga Larissa dos Santos foi assediada pela supervisora.
“Ela me disse que eu deveria me portar igual uma escravinha. Depois, disse que eu era muito petulante, que se pudesse me amarraria em um tronco e me daria chibatadas para aprender a me portar. Percebo que situações como essa, flagrantemente preconceituosas, não são consideradas como racismo. Depois disso, ela fez da minha vida um inferno, e pedi demissão.”
Além da origem e da cor da pele, o uso do idioma é mais uma fonte de discriminação. Para tentar passar despercebida, a socióloga Jéssica Ribeiro acabou adotando uma forma híbrida de falar o idioma.
“A pronúncia sai automática, não forço para fazer. Acho que é uma defesa inconsciente para evitar ser corrigida no uso das palavras. Já me disseram que falava errado, e mesmo com palavras conhecidas, não querem compreender. Isso aconteceu tantas vezes que me deixou insegura. É como se a nossa língua fosse inferior”, relata.
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Avanço da extrema direita
Assim como em outros países europeus, em Portugal, o discurso anti-imigração recrudesceu com o avanço eleitoral de partidos de extrema direita, como o Chega!.
Nas eleições legislativas de março do ano passado, a legenda elegeu 48 parlamentares, e se tornou a terceira maior força política do Parlamento, quadruplicando o número de representantes eleitos em relação a 2022.
“Importaram uma retórica política que não existia aqui”, diz Mariana Machado. “Usam os migrantes como bodes expiatórios e sobrevalorizam os estereótipos ligados à criminalidade, à hipersexualização.” O Chega! tem como principal bandeira propostas que pretendem restringir a imigração.
Em 2020, o dirigente do partido, André Ventura, teve uma fala xenofóbica repudiada por todas as outras siglas da Assembleia da República.
Em uma publicação no Facebook, ele sugeriu que a deputada Joacine Katar Moreira, do Livre, fosse deportada para Guiné-Bissau depois que ela defendeu a devolução do patrimônio cultural dos museus portugueses aos países de origem.
Denúncias de xenofobia
No entanto, sanções por racismo e xenofobia são raras no país. A lei n.º 93/2017, que trata do combate a esses casos prevê o pagamento de uma indenização quando há condenações. No Brasil, a legislação é mais dura.
O crime de racismo, assim como o de injúria racial, é inafiançável, e além da multa, também prevê prisão de 2 a 5 anos.
As denúncias por xenofobia e racismo em Portugal podem ser registradas no e-mail da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial ([email protected]). Havia um formulário virtual para coletar as queixas, que está fora do ar.
Carolina Vieira, fundadora da Plataforma Geni — que orienta as vítimas de xenofobia sobre onde encontrar apoio —, incentiva os brasileiros a registrarem as denúncias.
“Assim geramos dados estatísticos e podemos pressionar as autoridades por sanções”.
Carolina reconhece que a impunidade dificulta as denúncias. “Eu mesma já fiz três queixas e até hoje não fui chamada para depor em nenhuma delas.”
O levantamento da Casa do Brasil de Lisboa aponta que 76% dos brasileiros alvos de discurso de ódio em Portugal não prestaram queixa.
“Os principais motivos destacados pelas pessoas migrantes inquiridas para não denunciar foram medo, sensação de impotência, sentimento de impunidade, custo financeiro e falta de acolhimento”, descreve o documento.
Reação à impunidade
Movimentos sociais de combate ao racismo e a xenofobia em Portugal consideram que a legislação para punir os agressores é frouxa. Por isso, diversos grupos articularam um abaixo-assinado para uma Iniciativa Legislativa Cidadã.
O objetivo da proposta é alterar o Código Penal para que, em vez de serem considerados apenas ilícitos administrativos, a discriminação racial e de origem passe a ser crime no país.
“É imprescindível uma reformulação jurídica que enquadre estas condutas como crimes, com as devidas consequências penais, para assim garantir a proteção efetiva dos direitos fundamentais e reforçar o compromisso do Estado com a justiça e a igualdade”, diz o documento.
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