Redes sociais e a cultura de celebração do corpo perfeito podem colocar a prática do naturismo em risco. Segundo a Federação Internacional de Naturismo, a prática visa viver em harmonia com a natureza para encorajar o respeito próprio, pelos outros e pelo meio ambiente.
Mark Blinch/Reuters
Após sobreviver ao nazismo e ao sistema comunista, o tradicional movimento naturista alemão enfrenta uma crise. A principal ameaça aos nudistas parte de redes como Instagram e TikTok, com sua celebração do corpo perfeito.
A verdade nua e crua é que, de um modo geral, os alemães não se deixam impressionar por corpos sem roupa. Alguns dos lagos, parques e praias do país são reservados a nudistas, e quem prefere estar vestido não costuma se incomodar em dividir o espaço com eles.
Pelo menos em parte, esse jeito relaxado se deve a um movimento icônico, e por vezes mal-entendido: o naturismo, denominado no país Freikörperkultur (FKK), literalmente “cultura do corpo livre”.
Em 2024, a associação Deutscher Verband für Freikörperkultur (DFK), que representa os interesses dos adeptos do nudismo no país, celebra seu 75º aniversário. Uma boa ocasião para revelar as camadas da evolução do movimento, e seu papel no tecido cultural na Alemanha, que alguns consideram um dos berços da “nudez cultivada”.
Nudez como antídoto à industrialização
Fato é que nenhuma lei alemã proíbe expressamente a nudez (não sexual). Em áreas privadas, ela é considerada legal, mesmo se visível a partir do exterior, e o mesmo se aplica ao banho de sol pelado, a menos que a legislação local delibere em contrário.
As raízes do FKK remontam ao fim do século 19, início do 20, quando na Alemanha nasciam movimentos de reforma social visando diminuir o impacto da industrialização sobre a saúde, pois a vida em cidades lotadas e poluídas vinha devastando o estado físico e mental da população.
Os representantes do movimento acreditavam que a agradável sensação do sol, ar e água sobre a pele nua, em meio a indivíduos de mentalidade semelhante, era benéfica, não só por promover uma autoimagem positiva, como também por auxiliar na cura de diversas doenças, inclusive tuberculose, raquitismo e depressão de inverno, hoje denominada transtorno afetivo sazonal (TAS).
Também como uma forma de rebelião contra a moral rígida do século 19, os primeiros grupos naturistas emergiram na década de 1890, propondo o banho de sol sem roupas como uma atividade natural, não sexualizada. Em 1920, estabeleceu-se na ilha de Sylt a primeira praia nudista alemã.
Poucos anos mais tarde, o pedagogo Adolf Koch fundou a Escola de Nudismo de Berlim, encorajando também exercícios físicos mistos ao ar livre, ou seja, reunindo mulheres e homens nus. A instituição organizou seu primeiro congresso internacional em 1929.
FKK avança, apesar de nazistas e comunistas
Durante o período nazista, o FKK enfrentou um destino incerto, devido às restrições morais. As leis impostas em 1933 pelo Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP) limitavam o nudismo de sexos mistos, numa crítica à “imoralidade” da República de Weimar.
Além disso, a nudez era associada ao marxismo e à homossexualidade – apesar de muitos membros da organização hitlerista SS serem adeptos do naturismo. Em 1942, algumas restrições foram atenuadas, embora se tenham mantido traços tendenciosos nazistas, em especial contra judeus e outros grupos marginalizados.
Após a Segunda Guerra Mundial, a divisão do país entre República Federal da Alemanha (RFA, ocidental e capitalista) e República Democrática Alemã (RDA, do leste e comunista) criou dois ambientes diversos para o FKK.
Para muitos alemães-orientais, ficar despido em público representava uma declaração de liberdade individual numa sociedade que, de resto, estava submetida a controles estritos. Embora inicialmente tenha procurado reprimir o movimento, temendo que ele minasse os ideais socialistas, a liderança da RDA acabou cedendo.
Paralelamente, na RFA era criada em 6 de novembro de 1949 a DFK, na cidade de Kassel.
Hoje a associação é parte da Confederação Alemã de Esportes Olímpicos (DOSB), como maior integrante da Federação Internacional Naturista.
Convivendo com o (próprio) corpo real
Afinal, o que se faz num clube FKK, além de ficar pelado? Basicamente o mesmo que em qualquer outra agremiação social, menos as roupas e qualquer coisa sexual. As atividades vão de natação e banho de sol a esportes de equipe como o voleibol. A Alemanha conta ainda com trilhas de ciclismo em que os naturistas podem – digamos – comungar com a natureza.
Os adeptos afirmam que, além de permitir maior circulação de ar e absorção ideal de vitamina D, esse estilo de vida estimula uma relação mais saudável com o próprio corpo, com suas rugas, verrugas e outras peculiaridades que fazem parte de ser humano. Além disso, ao eliminar figurinos elaborados e acessórios luxuosos, a nudez seria uma grande niveladora.
Uma pesquisa publicada em 2017 pela revista The Journal of Happiness Studies confirma: estar nu em conjunto pode melhorar a autoimagem física, e aumentar a autoestima e a satisfação existencial. Segundo o autor principal do estudo, Keon West, da Goldsmiths, University City of London, ambientes naturistas permitem que se vejam corpos reais, sem filtros, reduzindo a ansiedade em torno da própria aparência.
Instagram e TikTok ameaçam matar o naturismo
Em contraste, ao celebrar o corpo humano em formas altamente cuidadas e filtradas, as plataformas digitais estão aparentemente contribuindo para o declínio do número de filiados ao movimento naturista.
“A ascensão do culto do corpo perfeito no TikTok e Instagram vem aumentando a pressão para não querer se despir”, comentou o presidente da DFK, Alfred Sigloch, em junho de 2024.
De fato: devido ao parco interesse, a associação teve até que cancelar alguns eventos planejados em comemoração a seu 75º aniversário. Num prazo de 25 anos, o número de seus sócios caiu de 65 mil para os atuais 34 mil, e consta que muitos dos que restam estão perdendo o interesse.
Além disso, os praticantes do nudismo são intimidados pela onipresença da tecnologia digital, temendo que imagens suas sejam postadas online sem seu consentimento.
Sigloch atribui ainda o ocaso dos locais de férias FKK à popularidade crescente do “glamping” – neologismo combinando “glamorous” e “camping”: os proprietários de acampamentos lucram mais com os veranistas dispostos a desembolsar por uma experiência mais luxuosa ao ar livre, do que com os nudistas – mais despojados, por natureza.
Apesar de tudo, durante a pandemia de covid-19 houve um ligeiro aumento de frequência nos clubes naturistas, que o líder naturista atribui, entre outros fatores, à necessidade de procurar atividades de lazer alternativas e mais saudáveis ao ar livre. Porém isso não altera o fato de que as associações nudistas encontram dificuldade em preservar seus sócios ou atrair novos.
Mas Sigloch está firmemente determinado a reviver o movimento da Freikörperkultur: “Vamos lutar para manter a bordo toda pessoa pelada que queira estar conosco. O FKK é uma cultura antiga, que não pode, nem vai morrer.”
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Mark Blinch/Reuters
Após sobreviver ao nazismo e ao sistema comunista, o tradicional movimento naturista alemão enfrenta uma crise. A principal ameaça aos nudistas parte de redes como Instagram e TikTok, com sua celebração do corpo perfeito.
A verdade nua e crua é que, de um modo geral, os alemães não se deixam impressionar por corpos sem roupa. Alguns dos lagos, parques e praias do país são reservados a nudistas, e quem prefere estar vestido não costuma se incomodar em dividir o espaço com eles.
Pelo menos em parte, esse jeito relaxado se deve a um movimento icônico, e por vezes mal-entendido: o naturismo, denominado no país Freikörperkultur (FKK), literalmente “cultura do corpo livre”.
Em 2024, a associação Deutscher Verband für Freikörperkultur (DFK), que representa os interesses dos adeptos do nudismo no país, celebra seu 75º aniversário. Uma boa ocasião para revelar as camadas da evolução do movimento, e seu papel no tecido cultural na Alemanha, que alguns consideram um dos berços da “nudez cultivada”.
Nudez como antídoto à industrialização
Fato é que nenhuma lei alemã proíbe expressamente a nudez (não sexual). Em áreas privadas, ela é considerada legal, mesmo se visível a partir do exterior, e o mesmo se aplica ao banho de sol pelado, a menos que a legislação local delibere em contrário.
As raízes do FKK remontam ao fim do século 19, início do 20, quando na Alemanha nasciam movimentos de reforma social visando diminuir o impacto da industrialização sobre a saúde, pois a vida em cidades lotadas e poluídas vinha devastando o estado físico e mental da população.
Os representantes do movimento acreditavam que a agradável sensação do sol, ar e água sobre a pele nua, em meio a indivíduos de mentalidade semelhante, era benéfica, não só por promover uma autoimagem positiva, como também por auxiliar na cura de diversas doenças, inclusive tuberculose, raquitismo e depressão de inverno, hoje denominada transtorno afetivo sazonal (TAS).
Também como uma forma de rebelião contra a moral rígida do século 19, os primeiros grupos naturistas emergiram na década de 1890, propondo o banho de sol sem roupas como uma atividade natural, não sexualizada. Em 1920, estabeleceu-se na ilha de Sylt a primeira praia nudista alemã.
Poucos anos mais tarde, o pedagogo Adolf Koch fundou a Escola de Nudismo de Berlim, encorajando também exercícios físicos mistos ao ar livre, ou seja, reunindo mulheres e homens nus. A instituição organizou seu primeiro congresso internacional em 1929.
FKK avança, apesar de nazistas e comunistas
Durante o período nazista, o FKK enfrentou um destino incerto, devido às restrições morais. As leis impostas em 1933 pelo Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores (NSDAP) limitavam o nudismo de sexos mistos, numa crítica à “imoralidade” da República de Weimar.
Além disso, a nudez era associada ao marxismo e à homossexualidade – apesar de muitos membros da organização hitlerista SS serem adeptos do naturismo. Em 1942, algumas restrições foram atenuadas, embora se tenham mantido traços tendenciosos nazistas, em especial contra judeus e outros grupos marginalizados.
Após a Segunda Guerra Mundial, a divisão do país entre República Federal da Alemanha (RFA, ocidental e capitalista) e República Democrática Alemã (RDA, do leste e comunista) criou dois ambientes diversos para o FKK.
Para muitos alemães-orientais, ficar despido em público representava uma declaração de liberdade individual numa sociedade que, de resto, estava submetida a controles estritos. Embora inicialmente tenha procurado reprimir o movimento, temendo que ele minasse os ideais socialistas, a liderança da RDA acabou cedendo.
Paralelamente, na RFA era criada em 6 de novembro de 1949 a DFK, na cidade de Kassel.
Hoje a associação é parte da Confederação Alemã de Esportes Olímpicos (DOSB), como maior integrante da Federação Internacional Naturista.
Convivendo com o (próprio) corpo real
Afinal, o que se faz num clube FKK, além de ficar pelado? Basicamente o mesmo que em qualquer outra agremiação social, menos as roupas e qualquer coisa sexual. As atividades vão de natação e banho de sol a esportes de equipe como o voleibol. A Alemanha conta ainda com trilhas de ciclismo em que os naturistas podem – digamos – comungar com a natureza.
Os adeptos afirmam que, além de permitir maior circulação de ar e absorção ideal de vitamina D, esse estilo de vida estimula uma relação mais saudável com o próprio corpo, com suas rugas, verrugas e outras peculiaridades que fazem parte de ser humano. Além disso, ao eliminar figurinos elaborados e acessórios luxuosos, a nudez seria uma grande niveladora.
Uma pesquisa publicada em 2017 pela revista The Journal of Happiness Studies confirma: estar nu em conjunto pode melhorar a autoimagem física, e aumentar a autoestima e a satisfação existencial. Segundo o autor principal do estudo, Keon West, da Goldsmiths, University City of London, ambientes naturistas permitem que se vejam corpos reais, sem filtros, reduzindo a ansiedade em torno da própria aparência.
Instagram e TikTok ameaçam matar o naturismo
Em contraste, ao celebrar o corpo humano em formas altamente cuidadas e filtradas, as plataformas digitais estão aparentemente contribuindo para o declínio do número de filiados ao movimento naturista.
“A ascensão do culto do corpo perfeito no TikTok e Instagram vem aumentando a pressão para não querer se despir”, comentou o presidente da DFK, Alfred Sigloch, em junho de 2024.
De fato: devido ao parco interesse, a associação teve até que cancelar alguns eventos planejados em comemoração a seu 75º aniversário. Num prazo de 25 anos, o número de seus sócios caiu de 65 mil para os atuais 34 mil, e consta que muitos dos que restam estão perdendo o interesse.
Além disso, os praticantes do nudismo são intimidados pela onipresença da tecnologia digital, temendo que imagens suas sejam postadas online sem seu consentimento.
Sigloch atribui ainda o ocaso dos locais de férias FKK à popularidade crescente do “glamping” – neologismo combinando “glamorous” e “camping”: os proprietários de acampamentos lucram mais com os veranistas dispostos a desembolsar por uma experiência mais luxuosa ao ar livre, do que com os nudistas – mais despojados, por natureza.
Apesar de tudo, durante a pandemia de covid-19 houve um ligeiro aumento de frequência nos clubes naturistas, que o líder naturista atribui, entre outros fatores, à necessidade de procurar atividades de lazer alternativas e mais saudáveis ao ar livre. Porém isso não altera o fato de que as associações nudistas encontram dificuldade em preservar seus sócios ou atrair novos.
Mas Sigloch está firmemente determinado a reviver o movimento da Freikörperkultur: “Vamos lutar para manter a bordo toda pessoa pelada que queira estar conosco. O FKK é uma cultura antiga, que não pode, nem vai morrer.”
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