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‘Ele tinha certeza de que poderia me controlar’: sem amigos ou dinheiro, mulheres relatam a violência no campo

G1 apresenta as histórias de três moradoras de áreas rurais que passaram anos sendo humilhadas e agredidas por seus companheiros, sem ter a quem pedir ajuda. Selo com Ivany, Luzia e Helena, personagens de matéria sobre violência doméstica no campo
Arte/g1
As mulheres de áreas rurais e de floresta ainda enfrentam obstáculos para conseguir romper com a violência no ambiente doméstico e familiar. Elas levam horas para chegar até hospitais, delegacias e serviços de assistência social. Têm medo de denunciar e não serem acolhidas. Estão em isolamento e falta recursos financeiros.
No geral, no campo e na cidade, os casos de violência contra mulher cresceram em 2022 na comparação com 2021. Apenas os casos de feminicídio subiram 16,9%, as tentativas 9,3%, segundo dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública.
Além dos casos mais extremos, existem diversos tipos de violência: psicológica, financeira, sexual, moral e patrimonial.
Em 2022, o Brasil teve pelo menos 32.448 denúncias de mulheres que foram vítimas de violência doméstica e familiar em zonas rurais, aponta levantamento exclusivo feito pelo g1, com dados de Secretarias de Segurança Pública dos estados e Distrito Federal (DF)
Os números, no entanto, devem ser bem maiores. Primeiro porque nem todos os estados especificam, no Boletim de Ocorrência, que os crimes ocorreram em área rural. E as formas de organizar os dados variam.
O g1 conversou com três vítimas moradoras de áreas rurais, que relatam como foi viver com os seus agressores durante anos em regiões isoladas, sem nenhuma ajuda, e as dificuldades para romper relações e conseguir denunciar. (Veja mais abaixo).
Escute as histórias de vítimas de violência doméstica no campo
O que muda no campo
➤ o isolamento: o fato de muitas mulheres do campo morarem distantes de vizinhos, familiares e de espaços de coletivos de convivência dificulta o pedido de socorro e o acesso à informação sobre como romper o ciclo de agressões.
➤ a distância dos serviços de saúde: hospitais com mais estrutura dificilmente estão localizados nos municípios das vítimas e os postos de saúde, em geral, têm horário de funcionamento limitado. Além disso, muitas não têm carro e dependem de ônibus e barcos fretados, que passam em horários específicos.
➤ a distância de delegacias e o medo de denunciar: da mesma forma que na saúde, as mulheres estão, em geral, distantes de delegacias e têm medo de a denúncia não dar em nada.
➤ impedimento de acessar bens e dinheiro: nas áreas rurais, ainda é comum que o homem centralize os recursos financeiros e impeça que a mulher tenha acesso a bens. Apesar disso, elas trabalham junto aos maridos e cuidam das casas e dos filhos.
Violência doméstica no campo: a saga de mulheres para denunciar agressões no meio rural
Uma vida com o agressor
Ivany, vítima de violência doméstica no campo
Arquivo pessoal
Ivany Schultz Reichardt, moradora de Teófilo Otoni (MG), passou boa parte de sua vida em estado de violência, mas conseguiu sair desse ciclo e denunciar seu marido e seu próprio irmão, que também a agredia.
“Foram 16 anos acordando e dormindo sendo agredida. Hoje acabou. Não sou mais aquela mulher sofrida”, relata.
Ivany estava grávida quando sofreu a primeira agressão do ex-marido, no final dos anos 80.
“Ele correu atrás de mim e eu fui por um rio. Quando entrei no rio, minha perna não alcançou e eu caí de cabeça pra baixo, e ele ficou em cima de mim me espancando”, lembra.
Em um dos episódios mais dramáticos, o ex-marido a agrediu com uma enxada. O golpe chegou a afundar a cabeça do filho recém-nascido que Ivany segurava nos braços.
A partir daquele momento foram mais de 10 horas de terror até ela conseguir ajuda. O marido a trancou no quarto com medo de ser descoberto, mas Ivany conseguiu fugir pela janela com o filho. Apenas no dia seguinte a criança foi operada e hoje vive sem sequelas.
Depois de denunciar o marido, as agressões eram feitas pelo seu irmão. “Ele me ameaçava com facão, me pisoteava com cavalo”, lembra.
Em 2018, Ivany ganhou forças para denunciar o irmão, uma decisão que contrariou toda a sua família.
“Quero deixar um recado para as mulheres das zonas rurais não se calarem”, diz.
Brasil teve mais de 30 mil denúncias de mulheres vítimas de violência doméstica no campo em 2022
Expulsa de casa
Luzia, vítima de violência doméstica no campo
Arquivo Pessoal
A professora rural Luzia Dercília Costa, de Rio Branco (AC), foi uma das mulheres vítimas de violência psicológica, financeira, moral e patrimonial. O ex-marido a expulsou de casa para ficar com outra mulher, não dividiu os bens corretamente e ainda ameaçou a matar.
“A gente acha que é uma discussão normal de casal, então vai sempre perdoando. Mas aí chegou um tempo que eu achei que deveria procurar uma proteção, a partir do momento que ele me ameaçou”, conta.
Ser ameaçada com uma arma foi o estopim para Luzia decidir terminar a relação, que durou 8 anos. Na época, ela morava em uma área de floresta em Bujari, a cerca de 51 km da capital do Acre.
Quando ele arranjou uma amante, começou a ficar ciumento e a ameaçar Luzia. O companheiro saía de casa com uma faca na mochila, dizendo que iria matá-la se descobrisse que tinha outro homem. Em outra ocasião, ele colocou uma arma em cima da mesa, repetindo o discurso.
Ele resolveu assumir a sua amante e a expulsou de casa, colocou seus bens na estrada e trocou a fechadura. Foi o que motivou a professora a ir à delegacia pela primeira vez. Sem serviços de segurança próximos, a professora rural precisou esperar o dia seguinte, pois precisava fretar um transporte.
Apesar de o marido já ter a propriedade quando se casaram, Luzia investia seu salário na produção da família. Ainda assim, o marido vendeu parte das cabeças de gado e repassou um valor inferior a ela.
Com medo de ele preparar alguma emboscada em meio à mata, a professora decidiu deixar a zona rural e se mudar para Rio Branco, onde dá aulas hoje.
“Tudo o que me aconteceu me afetou muito. Eu pesava 60 kg na época, dentro de 1 mês perdi 8,6 kg. Eu fui muito afetada também no meu trabalho”.
Atualmente, Luzia tem uma liminar que impede que o ex-marido se aproxime dela.
SAIBA MAIS: Veja como denunciar violência doméstica
Prisão sem grades
Luzia, vítima de violência doméstica no campo
Arquivo Pessoal
A produtora rural Helena José Gomes, de João Pinheiro (MG) vivia em isolamento. O companheiro não permitia que ela convivesse com outras pessoas, nem mesmo uma filha já adulta de um relacionamento anterior. A produtora também não podia ter redes sociais ou até um celular. Ao se separarem, ele não quis dividir os bens.
“Ele não falava que não queria que eu fosse na vizinha, mas, se eu fosse lá, quando chegasse em casa, ele estaria bravo”. E, para evitar brigas, ela não ia.
A produtora rural foi diagnosticada com depressão, mas o marido não permitia que ela tratasse a doença, para ele “depressão se cura com reza”.
“Ele tinha certeza de que podia me controlar, ele me escolheu a dedo”, diz.
“Eu fiquei calada durante os nove anos. Os vizinhos já disseram que pensavam que nós dois vivíamos bem. E quando eu resolvi dar o grito, eu não tinha falado antes de vergonha, porque a gente era considerado aqui o casal nota 10”, relata.
O “grito” aconteceu e ela resolveu fugir de casa e ir morar com a filha.
Hoje, a agricultora tem uma medida protetiva contra o ex-marido, enfrenta o processo de divórcio na Justiça e recuperou o direito à sua casa.
‘É tudo novo para mim, é como se eu tivesse saído da cadeia. Depois que eu me separei desse indivíduo, a minha vida é outra. Hoje eu sinto alegria, eu sinto prazer”
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Fonte:

g1 > Agronegócios

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