Reprodução/TV Anhanguera
O ano começou com diversas notícias de trabalho semelhante à escravidão na agricultura: na colheita do arroz, cana-de-açúcar e até na uva, o que, até então, não era comum.
De janeiro a 22 de março deste ano, 837 pessoas foram resgatadas dessa situação em zonas rurais, 91% do total das vítimas do período.
Esse é o maior número para um 1º trimestre em 14 anos e representa uma alta de 112% em relação aos primeiros três meses de 2022.
Os dados são do chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Maurício Krepsky.
Não há uma única explicação para esse aumento.
O que diz quem fiscaliza: Maurício Krepsky, do Ministério do Trabalho, afirma que os próprios trabalhadores têm denunciado esse tipo de situação, o que não era comum antigamente; por outro lado, ele diz que o número de fiscais em atividade diminuiu nos últimos anos. Muitos se aposentaram, mas as vagas não são respostas desde 2013. Novas contratações são necessárias para montar ações de prevenção e que flagrem o trabalho escravo com antecedência, antes mesmo de as denúncias chegarem, diz;
O que afirmam os trabalhadores: a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar) afirma que a reforma trabalhista de 2017 precarizou muito o trabalho rural: a mudança permitiu a terceirização da colheita e do plantio, mas as empresas que surgiram nesse ramo têm colocado os empregados em situações degradantes. E elas não têm sido devidamente fiscalizadas, afirma;
O que pensa quem estuda o assunto: o aumento da pobreza e da miséria após a pandemia piorou as condições de vida no campo e criou um grande contingente de pessoas disponível para ocupar posições mais precarizadas de trabalho. É o que avalia a advogada e pesquisadora Lívia Miraglia, presidente da Comissão de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da OAB-MG e coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG;
Entidades que representam os produtores, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) não responderam a pedidos de comentários do g1 até o fechamento desta reportagem.
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Mudança no perfil das denúncias
Maurício Krepsky, chefe da Dtrae do Ministério do Trabalho, afirma que houve uma mudança no perfil das denúncias nos últimos anos.
“A gente percebe que, agora, estamos recebendo denúncias dos próprios trabalhadores”, diz o auditor fiscal.
“Aqueles que têm um telefone com WhatsApp conseguem até mandar um vídeo mostrando ‘olha a situação que estamos aqui’. Esses vídeos vão circulando até chegar na gente ou, às vezes, chegam diretamente”, acrescenta.
Krepsky diz que, no momento do resgate, é função dos fiscais orientar os trabalhadores sobre os seus direitos e apontar o que está errado em determinada relação de trabalho.
“Depois [dos resgates], a gente acaba tendo contato com esses trabalhadores. Muitas vezes, eles vão pra outro lugar fazer a mesma coisa e percebem ‘opa aqui está até pior’, ‘o fiscal disse que isso aqui não é aceito pelo Estado Brasileiro’. Aí ele vai e denuncia o caso'”, diz.
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Terceirização e falta de fiscalização
A Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar) avalia que a reforma trabalhista, implementada em 2017, precarizou o trabalho rural, abrindo brechas para situações degradantes de trabalho.
Com a reforma, a terceirização da atividade fim das empresas passou a ser permitida. No caso de uma plantação, a atividade fim é o plantio e a colheita.
Antes da mudança, as fazendas eram obrigadas a contratar os trabalhadores de forma direta, criando uma relação de maior responsabilidade com eles. Quem saía em busca dessas pessoas eram os “arregimentadores de mão de obra”, também conhecidos como “gatos”.
“A terceirização no meio rural regulamentou o ‘gato’. Esse intermediário cobra das empresas um valor bem acima pela mão de obra e repassa muito pouco para os trabalhadores. E aí geram essas condições de trabalho análogo à escravidão”, diz Santos, presidente da Contar.
Em boa parte dos casos, essas empresas terceirizadas não têm nem faturamento suficiente para realizar contratos com grandes fazendas, pontua Santos.
“As prestadoras de serviço precisam ter condições de pagar esses trabalhadores. A gente sabe que, hoje, ninguém fiscaliza elas”.
Para Lívia, da UFMG, além do Ministério do trabalho, as fazendas precisam fiscalizar melhor os seus fornecedores.
“Como é que uma empresa do agronegócio pode ser ambientalmente responsável sem ser, primeiro, responsável com as pessoas que lhe prestam serviço?”, ressalta.
“A Alemanha a França e a Inglaterra já possuem leis que proíbem a entrada de produtos de empresas que utilizam mão de obra escrava. Então, se eu quero ser um grande exportador do agronegócio, preciso começar a pensar nisso”, conclui Lívia.
De 2016 a 2022, o número de auditores fiscais do trabalho em atividade caiu 21%. Hoje,
“As pessoas foram se aposentando e não teve concurso público para repor. O último concurso foi em 2013”, diz Krepsky, chefe da Dtrae, do Ministério do Trabalho.
“A carreira [de fiscal do trabalho] está minguando. Então, hoje, a gente só faz aquilo que é realmente urgente, as denúncias que chegam. A gente não consegue fazer inspeções de rotina ou de prevenção”, explica.
“Em alguns casos, conseguimos planejar. No plantio e colheita da cebola em Santa Catarina, por exemplo, a gente já sabe que tem um histórico complicado de trabalho escravo. Então, a gente não precisa esperar a denúncia chegar para planejar uma ação fiscal”, explica.
Piora nas condições de vida no campo
Além da reforma trabalhista, o aumento da pobreza no Brasil também estimulou o crescimento de formas degradantes de trabalho, pontua a advogada Lívia Miraglia, presidente da Comissão de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da OAB-MG e da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“A crise econômica que a pandemia provocou se refletiu de forma mais incisiva no trabalho rural, onde já existe uma precarização muito forte com a terceirização, quarteirização de atividades”, destaca.
“O aumento de pessoas na linha de miséria forma um grande contingente humano disponível para qualquer tipo de trabalho”, acrescenta. É por isso que os trabalhadores são, geralmente, aliciados em municípios com baixo índice de desenvolvimento humano, diz Lívia.
A pesquisadora também relaciona essa situação com a herança colonial e escravista do Brasil. “Essa herança negativa ainda insiste em nos assombrar. Vivemos ainda uma desvalorização dos trabalhos manuais, dos trabalhos do campo e em um racismo estrutural. […] Os senhores de Engenho da contemporaneidade se julgam superiores a ponto de subjugar um outro brasileiro”, comenta.
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Casos recentes têm surpreendido fiscais
Os casos recentes de resgate de trabalhadores no meio rural têm surpreendido os fiscais, tanto pelo tipo de cultivo agrícola, grau de violência e quantidade de trabalhadores resgatados, diz Maurício Krepsky.
Uma das operações mais emblemáticas foi o resgate no cultivo da uva, que envolveu três grandes empresas conhecidas: Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. No total, 207 homens que prestavam serviço nessas fazendas foram encontrados em situação análoga à escravidão.
“Até então, só tinha ocorrido um resgate no cultivo da uva. Foi no ano passado e de um trabalhador apenas, no município de Paraí, no Rio Grande do Sul. E, então, chega esse caso com um número anormal de trabalhadores envolvidos e com componentes de crueldade”, destaca o auditor.
Os trabalhadores resgatados nesta operação relataram ter sofrido espancamentos, choques elétricos, tiros de bala de borracha e ataques com spray de pimenta, além de jornadas exaustivas de trabalho.
“Isso [as agressões físicas] não é algo que a gente encontra em todos os casos. Geralmente, nós vemos os trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho. Não quero dizer que isso é pouca coisa. Isso, por si, só já é uma violação grave de direitos humanos”.
Outro ponto que tem chamado a atenção dele é a quantidade de pessoas encontradas nas operações. Além dos 207 homens na colheita da uva, uma operação em Goiás, em março, resgatou mais de 200 homens em uma lavoura de cana-de-açúcar.
“[Essa quantidade] foge totalmente dos padrões de resgates dos últimos 5 anos. Nos anos 2000, isso era bem comum. Em 2007, por exemplo, houve três casos de resgate de mais de 1 mil trabalhadores, em fazendas de cana. Mas, hoje, mais de 100 trabalhadores já é muito”, observa.
Dados do Ministério do Trabalho mostram, inclusive, que os casos de escravidão moderna na cana-de-açúcar chegaram a cair a partir de 2010, mas voltaram a crescer em 2019. “A gente entende isso como um retrocesso do setor”, destaca Krepsky.